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O que é a literatura de cordel, gênero que inspirou a abertura da novela “No Rancho Fundo”


Com pouco apelo popular, gênero é revivido na abertura da novela, que retrata o viver de uma família nordestina; conheça a origem da literatura de cordel e o desenvolvimento de seu estilo visual

Mesmo tendo sido um movimento com bastante expressão no passado, a literatura de cordel, juntamente com a xilogravura, caminha de forma tímida hoje, vez ou outra aparece em obras brasileiras de grande alcance, ela ganhou um certo destaque durante a exibição de Cordel Encantado em 2011, que não só pegava o estilo para a sua abertura, mas evidenciava o gênero de forma expositiva, abordando e trazendo cordelistas importantes como Gonçalo Ferreira.

Atualmente, o estilo visual gerado pelo cordel é revivido na abertura da novela No Rancho Fundo. E como forma de tentar evidenciar a riqueza do gênero, vamos explorar neste post um pouco da sua história, a origem dele e de seus visuais, características e como a literatura de cordel ressurge nos tempos modernos… então senta que lá vem história, mas eu prometo contar da forma mais intuitiva possível.

literatura de cordel
A Caapora conversando com o Saci Pererê. De Abraão Batista. Acervo Museu de Folclore Edison Carneiro

A origem da literatura de cordel

Falar sobre a origem da literatura de cordel faz com que remontemos à tempos antigos, lá no fim da idade média, durante a colonização do Brasil, isto porque ele surge em meio ao trovadorismo de Portugal, considerado o primeiro movimento artístico da poesia ibérica, que compunha cantigas líricas e satíricas com uma mistura entre a poesia e a música, em sua grande maioria para o povo não letrado. A literatura sai da cultura portuguesa, espalha-se pela Europa e chega ao Brasil, onde ganha suas próprias características.

a origem da literatura de cordel
Cordéis. Fonte: Wikipedia
A literatura de folhetos em Portugal

Quando os colonizadores vieram para o Brasil, trouxeram consigo essas cantigas, que foram incorporadas aos aspectos culturais brasileiros. Elas eram escritas nos folhetos e expostas em barbantes para comercialização em feiras livre ou mercado.

Originalmente, o termo “cordel” não era utilizado, em vez disso se usava a expressão “Literatura de Folhetos” para se referir à esses cantos. Foi somente em em 1881, segundo o cordelista Gonçalo Ferreira, que o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Carlos Aulete introduziu o termo “cordel”, que a propósito tinha uma entoação de cunho bem negativo.

No dicionário, “literatura de cordel” se refere à “um conjunto de publicações de pouco ou nenhum valor”, justamente porque seu público alvo era o povo não letrado. Essa acepção perdura até hoje.

Naturalmente à sua origem, os primeiros cantos falavam sobre as maravilhas das paradisíacas terras do Novo Mundo e retratava as aventuras dos camponeses, guerreiros e marginais da Europa medieval rumo à América, sempre enfatizando um confronto maniqueísta dos heróis contra os vilões, o cordel de Portugal tinha um tom mais propagandista.

a origem da literatura de cordel
“Princesa Magalona.” Fonte: Betnet Leilões
A literatura de cordel nordestina

No Brasil, o gênero ganhou a nomenclatura de literatura de cordel do nordeste. E foi por volta de 1920 que se estabeleceu o que conhecemos da literatura de fato, suas principais características, mas até que isso acontecesse, ela repetia o que a literatura de folheto em Portugal fazia.

Assim como no pais europeu, sua principal função era de comunicar e educar – sim, pois o cordel muitas vezes alfabetizava – as pessoas do nordeste (seja por meio dos folhetos escritos ou cantos), que aprendiam ou apenas replicavam os conhecimentos adquiridos.

Embora também tivessem histórias fictícias, envolviam problemas do cotidiano, como impostos fiscais, custo de vida, cangaceirismo, seca etc, sempre com tom satírico. Por falar nisso, o aspecto satírico cômico utilizado nas obras, na verdade apenas mascarava, tentando camuflar, a forte crítica que se queria fazer da sociedade na época.

Ainda que a cantoria e escrita já fosse igualmente utilizada, foi no nordeste que o cordel ganhou relevância no canto, pois fazia parte da cultura da região a apresentação de poemas e desafios por meio de cantoria.

O cordelista na feira de J. Borges

Lá também floresceu uma outra característica bem importante, própria dos cordéis nordestinos: os cantos sertanejos que abordavam cenários e animais característicos da região e cultura. Contos de bois que lutavam ferozmente com seus perseguidores até a morte, narrado pela própria perspectiva dos bois. O sucesso se devia porque as histórias enalteciam a braveza de se viver no sertão.

Características da literatura de cordel

Essa evolução do cordel culminou na formação de suas principais características: poesias de cunho satírico cômico que absorveu aspectos da cultura da região do nordeste, expressão que combina rimas e oração, falando sobre o cotidiano, informando com humor, e por conta disso, acessíveis, com uma linguagem bem simples e coloquial e cheia de expressões típicas da região.

Embora a literatura de cordel seja múltipla, abordando praticamente qualquer tema da atualidade ou não, desde lendas, fantasias, estórias de animais, romances, religião, coflitos etc.

o que é literatura de cordel?
O folclore nordestino representado em literaturas de cordel. De Valério.

Vale lembrar também que a estrutura da poesia do cordel é muitas vezes bem ‘rígida’, seguindo uma métrica silábica que fornece a harmonia dos versos, isto é, seus versos são contatos e classificados de acordo com a quantidade de sílaba que ele apresenta.

Cabeceira:
Quando eu vim da lá de cima
Que passei em Mato Grosso,
Deixei tua mãe parida
Com um chocalho no pescoço,
Olhe, não bula comigo,
Senão o barulho é grosso.
Caetano:
Nas profundas do inferno
Tem uma caldeira fervendo,
Com tua mãe de uma banda,
Com uma colher mexendo
E os diabos todos do inferno
Nas suas costelas comendo

E quanto ao estilo visual ?

Até aqui, contamos como a literatura de cordel se desenvolveu na escrita e no canto e, propositalmente, reservamos para falar do seu estilo visual de uma maneira mais isolada, pois gostaríamos de contextualizar antes, para então dar um destaque à ela, que é igualmente fundamental para identidade do gênero.

A relação da xilogravura com a literatura de cordel

O aspecto visual da literatura de cordel se desenvolveu envolto ao que conhecemos como xilogravura, o processo técnico de impressão com origem possivelmente chinesa que utiliza relevo alto para esculpir uma imagem e transferi-la para o papel, muito similar ao processo de carimbo. Sua principal matéria prima de produção, que serve de base como matriz é a madeira. Embora a xilogravura em si não tenha sido o primeiro processo de impressão dos cordéis, tento passado já pelo clichê, um processo parecido, mas usando matriz de metal, porém caro.

J. Borges esculpindo em matriz para Xilogravura. Fonte: Marco Antônio Sá

A Xilogravura funciona mais ou menos assim, um artista esculpe na madeira utilizando um instrumento afiado, muitas vezes uma goiva, formão ou furil – instrumentos com pontas finas ou afiadas capazes de perfurar a madeira mais facilmente e de maneira mais precisa, após finalizar o desenho, a tinta é aplicada sobre a madeira e impressa no papel, assim um único entalhe serve como molde para imprimir várias ilustrações.

Histórico artístico do gênero

Um dos primeiros folhetos ilustrados em xilogravura data de 1907, representando o famoso cangaceiro Antonio Silvino, cuja autoria nunca foi encontrada.

qual foi a origem do cordel?
Cangaceiro Antonio Silvino. Autor Desconhecido

Mas o cordel encontrou popularidade na xilogravura e vice-versa porque a madeira era a matéria prima mais barata, em relação ao clichê, ou seja, o que fazia a edição e produção dos poetas saírem mais em conta. O artista responsável pela fusão do cordel com a xilogravura é conhecido como Inocêncio da Costa Nick ou “Mestre Noza”.

quais são as principais características da literatura de cordel?
Cordel do “Mestre Noza”.

Outros cordelistas populares fizeram nome no cordel, como José Costa Leite, Minelvino Francisco da Silva, J. Borges, José Soares da Silva, Jerônimo Soares, J. Barros entre outros. Da mesma forma artistas do “cordel erudito” que se inspiraram na xilogravura popular como Gilvan Samico, Newton Cavalcanti, José Altino.

Juntos, estes artistas ajudaram a compor o estilo visual do cordel como conhecemos hoje, que transcende à contação folclórica original e se manifesta como expressão artística, independente do que se quer contar, embora a tradição nordestina esteja sempre muito enraizada.

Cordel nos tempos modernos

A literatura, hoje, evidentemente não se apresenta da mesma forma que um dia foi, ela desapareceu das feiras e praças e, por conta das novas tecnologias, ganhou novas configurações. Perdeu um grande espaço e público para a televisão, mas ao mesmo tempo se reinventou no meio tecnológico. Sendo apresentada em formatos audiovisuais e disseminada nas redes e resistindo com algumas editoras.

Assim como ela um dia se adaptou da realidade portuguesa para a brasileira, ela também se adaptou da realidade nordestina para à de várias regiões do Brasil. Ganhando novas abordagens e enfoques, tecendo novas críticas e preocupações modernas, mas mantendo o formato poético, cantado e visual.

O novo público

Seu público, no entanto, virou de ponta cabeça, quando um dia foi um gênero que alfabetizou e alcançou as maças mais humildes, hoje é alvo de interesse do meio acadêmicos, estudantes e turistas, pois a forma de consumir informação mudou, mas, ainda assim, o estilo visual perpetua nas produções para o grande público

Para o ensino, existem algumas manifestações no meio editorial que tentam reviver o gênero em sua forma mais tradicional, recontando grandes clássicos como O pequeno príncipe, Os miseráveis, Romeu e Julieta etc, em seu estilo.

literatura de cordel
Literatura de cordel recontando os diversos clássicos. Fonte: Acervo Luana Rafaela dos Santos.
Produções modernas em literatura de cordel e xilogravura

Já para o grande público, podemos ver alguns usos do gênero em novelas e produções independentes. Um exemplo de artista moderno que utiliza o gênero em poesia, estética e canto é o poeta e cordelista Bráulio Bessa, que faz produções para o Youtube buscando o humor, como sempre, mas tecendo críticas.

Da mesma forma, produções da televisão se inspiram na literatura de cordel e xilogravura para compor muitas de suas aberturas, como a famosa novela Cordel Encantado (2011) que usou o estilo gráfico e vários elementos da literatura de cordel para compor sua abertura e narrar a sua história. E a abertura de Velho Chico (2016) que compôs um trabalho riquíssimo de detalhes em xilogravura.

E temos também a mais recente novela No Rancho Fundo, que aproveita a história da vivência de uma família que muda de vida ao encontrar a preciosa pedra Turmalina Paraíba em uma cidade fictícia do nordeste, para produzir uma abertura que resgata a cultura do povo. Com a ilustração do recifense Perron Ramos, que produz peças de arte com base no gênero

Gostou de conhecer um pouco da história de literatura de cordel? Não parece, mas o gênero é bem rico e influenciou muitas criações ao longo da história e continua a influenciar até hoje, ainda que seu público tenha mudado completamente. Caso queira complementar esse post ou fazer alguma crítica construtiva, fique a vontade para usar a área de comentário.

Bibliografia/Fontes: MUNIZ, Amanda. A tragetória da Literatura de Cordel no Brasil: das Feiras às Mídias Digitais. VERBUM, v.12, n.2 p -6-31, setembro 2022. Acesso: bit.ly/3zM3Vex | SOUZA, Luana. Literatura de Cordel: Um Recurso pedagódico. Revista Científica da FASETE, 2018. Acesso: https://abrir.link/xWoZC | FERREIRA, Lia. Xilogravura e Literatura de Cordel: Sua relação com as artes, a publicidade e a Comunicação Visual. FASA, UniCEUB, 2005. Acesso: https://abrir.link/CIeeL | Acervo: Museu de Folclore Edison Carneiro | Acervo: Casa Rui Barbosa | Instagram Perron Ramos

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