Termo cunhado pelo designer de jogos Clint Hocking virou conceito para crítica, mas pode ser superestimado; entenda tudo sobre dissonância ludonarrativa neste artigo
Em 2007, o designer e produtor Clint Hocking cunhou o termo “dissonância ludonarrativa” em uma crítica ao primeiro jogo da trilogia Bioshock (2K,2007). Sua intenção como analista de jogo era apontar uma certa incoerência, ou dissonância, que existia entre a narrativa (ou storytelling) em termos de história que Bioshock propunha e a narrativa construída por meio da jogabilidade.
Desde então o termo repercutiu na crítica de jogos e virou, por certo tempo, um parâmetro de avaliação dos novos lançamento. No post de hoje, vamos explorar o que significa a dissonância em jogos, a origem, como pode ser aplicada à análises de design de jogos e se faz sentido debater sobre a questionável dissonância ludonarrativa.
Storytelling: a arte de contar histórias
Antes de entrar na dissonância ludonarrativa de fato, é interessante observar os conceitos de narrativa e gameplay, para ficar claro que ambas podem ser formas diferentes de contar uma história (storytelling) dentro do jogo.
As experiências das narrativas
A narrativa existe em qualquer obra, mas são experienciadas de maneiras diferentes à depender da mídia. Por exemplo, em um livro dizemos que o leitor absorve a história através de uma leitura linear representada por ideias expostas em palavras e expressadas pelo imaginário do leitor.
Já em um filme, os telespectadores experimentam uma obra com “experiências sensoriais”, isto é, os sons, seja das falas ou das músicas, reverberam no espaço e causam diversas sensações, assim como enxergamos cores e movimentos que causam estímulos, todos compondo uma história para acompanhar, contada por e com todas experiências mencionadas.
Nos jogos, tudo isso se eleva, além das duas experiências anteriores acumuladas, temos a adição da interação, que provoca novos estímulos, aumentando a imersão. A interatividade adiciona uma nova camada à recepção das obras.
Narrativa embutida e narrativa emergente nos jogos
Nesse sentido podemos distinguir melhor os dois tipos de narrativas. A narrativa embutida é aquela que está aos moldes dos filmes, ela possui um roteiro pré-definido e que será apresentada da maneira que foi escrita pelos desenvolvedores, normalmente por meio de custscenes ou CGIs (cenas com gráficos renderizados). É como se de fato a narrativa tivesse sido colocada ali na progressão do jogo, embutida, independente das decisões dos jogadores.
Nesse tipo de narrativa, a jogabilidade (gameplay) é um suporte para que a história seja contada, controlamos o personagem pelo mundo apenas para desenvolver a narrativa que foi embutida naquele jogo. Um bom exemplo disso é Life is Strange, onde a narrativa embutida, prevalece sobre a jogabilidade, o mesmo acontece em Uncharted e tantos outros jogos modernos.
Já a narrativa emergente é aquela que acontece durante a jogabilidade e à ela está atrelada. Não se trata somente de escolhas, pois as escolhas também existem para construção da narrativa embutida, mas sim do caminho trilhado pelo jogador dada as ferramentas para tal. É a história contada através da forma como o jogador escolhe jogar.
Por exemplo, em Dishonored, dizemos que a narrativa emergente é um ponto forte, pois o jogador decide como ele quer avançar pelo cenário, seguindo um caminho pacífico sem ninguém perceber, sem matar, nocauteando alguns ou todos, simplesmente matando todo mundo ou, ainda, uma mistura disso tudo do início ao fim, em qualquer ordem.
O mesmo acontece com vários jogos de mundo aberto como The Witcher 3, onde existe uma narrativa embutida variável com escolhas, mas mesclada fortemente por uma narrativa emergente escolhida pela forma de cada um explorar o jogo, resultando em uma experiência diferente pra cada um.
O que é dissonância ludonarrativa
Dados os conceitos iniciais, vamos ao tópico do artigo. A dissonância ludonarrativa é um termo utilizado para descrever justamente a contradição entre a narrativa de um jogo (a história que ele conta) e sua gameplay (como o jogo é jogado). Quando esses dois elementos estão em desacordo, pode causar uma suposta sensação de desconexão para o jogador, afetando sua imersão e engajamento.
A crítica de Clint à Bioshock
O termo surgiu na crítica de Clint Hocking à Bioshock em seu blog, em que ele argumentava que o jogo apresentava uma dissonância significativa entre suas mecânicas de jogabilidade e a narrativa. O conceito vem da mescla das palavras ludologia – um área que estuda a natureza dos jogos de qualquer espécie – e narrativa, mais propriamente do conceito de storytelling, a contação de histórias.
Clint dizia que a narrativa de Bioshock criticava o egoísmo e a destruição causados pelo desejo de poder. Na história de Bioshock, a grosso modo, o protagonista é inserido em Rapture, uma utopia subaquática criada por Andrew Ryan que desmoronou devido ao uso descontrolado de uma substância chamada ADAM – que dá poderes especiais às pessoas.
Por outro lado, as mecânicas de Bioshock recompensam o jogador por acumular ADAM ao roubar das Little Sisters – que supostamente deveriam ser salvas – e se tornar mais poderoso. Para Clint, a filosofia da narrativa possui uma contradição em relação as ações incentivadas pela jogabilidade. A história diz algo, enquanto a gameplay diz outra.
Aplicação à analise de jogos: exemplos de dissonância ludonarrativa
A sua crítica é relativamente fácil de entender e, na verdade, é completamente compreensível e faz todo sentido lógico, a gameplay contraria algo que a história embutida diz e por isso a sua crítica rapidamente repercutiu no mundo dos jogos e influenciou críticos à usarem o conceito pra criticar outros jogos que traziam essa dissonância.
Esse conflito narrativa vs gameplay é perceptível em jogos como Uncharted, onde Nathan Drake é retratado como um caçador de tesouros carismático e muitas vezes relutante em usar a violência, enquanto na jogabilidade participamos de combates violentos, matando dezenas de inimigos.
Tomb Raider adota a mesma lógica. A protagonista Lara Croft é retratada como uma jovem arqueóloga em sua primeira grande aventura, inicialmente inexperiente e vulnerável, mas rapidamente em sua gameplay se torna uma guerreira eficaz, matando inúmeros inimigos com uma variedade de armas.
A dissonância ludonarrativa é relevante?
Bom, e por aí vai né, já deu pra entender a lógica e como o conceito foi e é aplicado as análises de jogos. Mas é interessante notar como o conceito é familiar no mundo do design de jogos, sobretudo para os desenvolvedores – assim como Clint-, porém, parte esmagadora dos jogadores sequer ouviram falar do termo. Então surge a questão, dissonância ludonarrativa é realmente algo tão relevante para experiência do jogador?
Como um parâmetro a dissonância ludonarrativa é muitas vezes como colocada como uma etapa do desenvolvimento de jogos para os produtores. Isto quer dizer que durante a produção de um jogo, o criador deve estar atento à narrativa e a jogabilidade, para que elas não entrem em desacordo e cause algum tipo de perturbação ao jogador, tenha coesão temática e esteja em constante, e cá entre nós, cansativa, revisão e feedback do jogador para alcançar uma suposta harmonia.
Suspensão da descrença versus a dissonância ludonarrativa
Porém a realidade é que os jogadores muitas experenciam os jogos deixando de lado essa comparação tão técnica e levando em conta muitas vezes apenas o que é apresentado na narrativa embutida, ou simplesmente aproveitando, sem julgar, a narrativa emergente. Esse processo tem um nome, e se chama suspensão da descrença.
O termo, cunhado pela primeira vez pelo filósofo e literário Luciano de Samósata, diz que o leitor, telespectador ou, neste caso, o jogador aceita como verídica as “verdades ficcionais” impostas naquele universo, independente dela estarem de acordo com a realidade ou não.
A imersão, muitas vezes provocada por uma narrativa engajante, bem desenvolvida e com a construção de sua própria lógica, faz com que o jogador desligue, em certa medida, um senso de lógica do mundo real para apenas apreciar a obra, o que entra em acordo com o conceito de círculo mágico, onde o jogador finalmente aceita e “faz um contrato” com o universo ficcional da obra.
Assim, olhando dessa perspectiva, parece que a dissonância ludonarrativa é um objeto de interesse muito mais dos desenvolvedores e críticos, do que algo que os jogadores realmente sentem a ponto de atrapalhar sua experiência e imersão com o jogo ou “frustrá-lo”, nas próprias palavras de Hocking.
Fontes: BIGOGNO, M.; RÊDA, V.; CARRETTA, M. Dissonância Ludonarrativa X Suspensão da Descrença: quando o gameplay desmente a narrativa ou quando o jogador apenas a aceita. [s.l: s.n.]. Disponível aqui.
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